Câmara de Curitiba (1693-1828): Os "Homens-Bons"

por João Cândido Martins — publicado 24/04/2020 23h21, última modificação 24/04/2020 23h21
 Câmara de Curitiba (1693-1828): Os "Homens-Bons"

Foto: Reprodução

No dia 29 de março de 1693, quando o povo reunido pediu ao capitão-povoador Mateus Leme que instituísse a justiça na Vila de Curitiba, estava pedindo, na verdade, a instalação de uma Câmara Municipal. O ancião atendeu a solicitação seguindo, de forma aproximada, as prescrições contidas nas Ordenações Filipinas, um conjunto de regramentos compilado durante a chamada União Ibérica, sob o governo dos reis Felipe II e Felipe III, da Espanha (que eram Felipe I e II de Portugal, respectivamente).

As ordenações eram constituídas por cinco livros, sendo que o primeiro tratava das questões municipais como a estrutura e o funcionamento das câmaras. “Em geral, as atribuições definidas no referido Título (composto por 49 parágrafos) versavam sobre assuntos relacionados aos bens do Concelho, à organização e manutenção do espaço público, às benfeitorias, às despesas e à cobrança de taxas”, destaca Karla Maria da Silva, no livro “O Papel das Câmaras Municipais no Brasil Colonial”.

A Câmara do Conselho (ou Senado) deveria dispor de um juiz ordinário, três ou quatro vereadores e um procurador. Os ocupantes destes cargos eram eleitos a cada três anos e contavam em seu auxílio com um conjunto de funcionários fixos e temporários. Paulo Fabris, autor de “Um debate acerca da história do município no Brasil”, lembra alguns cargos que atuavam junto aos oficiais principais: tesoureiro, escrivão, juiz de vintena, almotacé, alcaide mór, recebedor de sisas, depositário judicial, depositário do cofre de órfãos, depositário da décima, escrivão de armas, quadrilheiro e avaliador de bens penhorados, entre outras funções.

“A trajetória política dos indivíduos geralmente começava por volta dos 30 anos de idade com o cargo de vereador. No entanto, observamos que com a mesma idade era possível ser eleito para a função de juiz ordinário. Para exercer a função de procurador era necessário um certo cabedal, pois era preciso responder com os próprios bens, ou com os de um fiador, pela receita da Câmara; por essa razão seria mais comum que os indivíduos com mais idade assumissem essa função”, esclarece Isis Messias da Silva no ensaio Legislação Portuguesa e Formação de Elites Políticas Locais: juízes e vereadores da Câmara Municipal de Curitiba – Século XVIII (Revista Vernáculo, nº 14 - 15 - 16).

Atribuições e competências
As atividades das Câmaras Municipais do período colonial eram muito mais variadas que as exercidas atualmente, comenta Victor Nunes Leal, citado por Paulo Fabris. Envolviam atos administrativos, judiciários, tributários, fiscalizatórios, ações de polícia e higiene pública. Sobre esse tema observa o historiador Helio Vianna: “agiam as Câmaras por intermédio de posturas e editais. De seus atos, havia recurso para autoridades superiores, como o Conselho Ultramarino, os corregedores de comarca, ouvidores-gerais ou da própria comarca. Em casos excepcionais, reuniam-se com outras autoridades administrativas e os homens bons (nobreza, milícia e clero), em importantes juntas gerais. Podiam, também, nomear procuradores na Corte. Muitas vezes determinava o rei que as Câmaras fossem ouvidas em assuntos de interesse comum ou próprio. Competia-lhes ainda registrar, em seus livros, os atos régios que dissessem respeito à administração do Estado”. (Vianna, Hélio. História Administrativa e Econômica do Brasil. São Paulo, 1955, citado por Karla Maria da Silva).

Apesar das atividades dos oficiais camarários não serem remuneradas, o fato de o cidadão estar investido em algum dos cargos (juiz, vereador ou procurador) lhe conferia prestígio e alguns privilégios, como lembra a pesquisadora Maria Beatriz Nizza da Silva. Entre tais privilégios, destaque para a impossibilidade de prisão sem expressa ordem régia. “Além disso, possuíam relativa autonomia financeira, em razão dos tributos forais, e exploravam os seus respectivos rossios, destinados a postos públicos ou ao aproveitamento que lhes conviesse dar”, destaca Nizza da Silva, citada por Karla Maria da Silva em Nova História da Expansão Portuguesa, de 1986.

Edmundo Zenha, citado por Fabris, resume, em O Município no Brasil: 1532-1700, a estrutura de uma câmara municipal do Brasil Colônia: “(...) um grupo de vizinhos, um território, um casarão quadrado, a pilastra plantada no meio da praça para ‘honra da vila’, um brasão de armas e um estandarte – eis aí os elementos materiais de nosso Concelho colonial. Esse conjunto era envolvido por uma emanação legal que lhe dava competência e jurisdição, exercidas através de oficiais que a Ordenação agrupava, pondo-os em movimento.

Com exceção do casarão quadrado – que seria construído anos depois – Curitiba seguiu esse modelo. Em seu artigo, Paulo Fabris comenta que a pobreza e o analfabetismo eram dominantes. “A maior parte da renda era remetida para Lisboa”, lembra ele. A mobília da Câmara era franciscana: alguns bancos, cadeiras e mesas e a arca municipal, um baú onde eram guardados os documentos, o sino que anunciava as sessões e os pelouros (bolas de cera que encerravam os papéis com os nomes dos eleitos para o triênio seguinte). Ainda entre as posses da câmara, estavam os livros de vereação e os livros que completavam os registros camarários: livros de notas, livros de registros, livros de correição, livro de receita e despesas.

Fenômeno
Isis Messias da Silva aponta a ocorrência de um fenômeno que não foi exclusividade da Vila de Curitiba, mas que também aqui foi determinante na composição do jogo político: “(...) as famílias da elite, muito menos temerosas do que poderia se supor, viam, umas nas outras, possíveis aliadas para ‘uma maior participação’, manutenção e manipulação do poder político. Sendo muitos dos envolvidos na administração local portadores de títulos militares, concluímos pela existência de uma relação unívoca entre títulos honoríficos e militares e as elites políticas locais, ou seja, as principais famílias detinham o monopólio do poder local, na câmara e na administração militar das tropas auxiliares e de ordenanças (...)”.

No mesmo sentido, a professora Vanderléia Canha explica que “independentemente da origem, qualquer pessoa que se mostrasse necessária à vida municipal poderia participar como oficial camarário. Na prática, porém, o grupo de pessoas que exercem os cargos se torna cada vez mais fechado. Poucas pessoas circulam no poder. O poder municipal fica nas mãos de uma elite economicamente privilegiada, que busca o prestígio social que os cargos municipais representam”.

Ainda para ela, “durante os dois primeiros séculos da colonização brasileira, o município teve prestígio e poder e manteve-se como uma das principais instituições coloniais. A distância da coroa e as dificuldades no controle de um território vasto e irregularmente povoado permitiram que isso acontecesse. O alargamento dos poderes camarários no entanto, não acontecem sem conflitos”, diz a pesquisadora Vanderléia Canha em A Organização da Câmara Municipal da Curitiba Setecentista (Curitiba, 1999).

Pelouros e Barretes
Um recorte na história da Câmara Municipal, entre 1748 e 1827, foi feito pelos pesquisadores Rosângela Maria Ferreira dos Santos e Antonio César de Almeida Santos. Eles transcreveram as atas eleitorais do período citado e também a análise do papel dos envolvidos com a Câmara Municipal de Curitiba no Brasil Colônia. A pesquisa foi publicada em 2003.

Rosângela lembra que o tema sempre foi marcado pela controvérsia. “Dos anos 30 aos anos 60, os estudos sobre as Câmaras coloniais se dividiam entre os que achavam que estas instituições tinham autonomia frente à corte e os que consideravam que as Câmaras eram meros mecanismos de reprodução das vontades do governo régio”, diz ela. “Só mais recentemente outros enfoques importantes ganharam relevo como, por exemplo, as inter-relações entre as redes familiares da aristocracia rural do período”, complementa.

Em certos momentos os municípios brasileiros pareceram desfrutar de uma quase total autonomia. Segundo o jurista Celso Ribeiro Bastos, “de fato, as coisas se passaram como se desfrutasse ele (o município) de uma autonomia institucional, (...) um centro vitalizado e regurgitante de independência na coisa pública” (Bastos, Celso Ribeiro. Comentário à Constituição do Brasil. São Paulo, 1998).

Eleições
A professora Rosângela Ferreira da Costa acredita que o entendimento do período passa necessariamente pela compreensão do processo eleitoral então vigente, que era regulamentado pelas Ordenações Filipinas (instituídas em 1603). Essa coletânea de regramentos estipulava em seu Título LXVII a existência de duas categorias de escrutínios: a “eleição de pelouro” e a “eleição de barrete”.

As eleições de pelouro eram reuniões solenes para as quais concorriam muitas pessoas. Os chamados “homens-bons” (componentes da elite político-financeira local) votavam secretamente em seis nomes que seriam posteriormente os eleitores dos cargos principais da Câmara (juiz, vereadores e procurador). Estudiosos como Fernando Cunha apontam que os escolhidos como eleitores muitas vezes detinham mais prestígios que os próprios escolhidos para os cargos de oficiais da Câmara. Escolhidos estes seis eleitores, era promovido um juramento de sigilo sobre os Evangelhos e, em seguida, eram separados em duplas que escolhiam um corpo de oficiais cada (evitados parentescos até 4º. grau), explica Rosângela Ferreira.

Conforme lembra a historiadora, “novas listas eram feitas pelo juiz com os cargos em separado e então eram feitos três pelouros para cada cargo (juiz, vereadores e procurador). Os pelouros eram colocados num saco com repartições para os respectivos ofícios. Com base nessas listas, o juiz elaborava três últimas listas com três conjuntos de oficiais. Os documentos eram assinados e lacrados nas repartições do saco, que, por fim, era guardado num cofre caracterizado por possuir três chaves (uma para cada vereador)”.

O sorteio do pelouro referente a cada ano se dava conforme o costume do local. A recomendação expressa nas Ordenações Filipinas era de que um inocente (um menino de 6 ou 7 anos) escolhesse uma das bolas de cera de dentro do saco. Ao término do sorteio, os eleitos recebiam notificações, mas só podiam tomar posse nos cargos após a confirmação da Coroa, que era conseguida por meio da Carta de Confirmação. Nas hipóteses de impedimento e recusa, a escolha era procedida pelos oficiais da Câmara e pelos homens-bons que depositavam o nome do escolhido num chapéu militar conhecido como barrete (daí a expressão “eleições de barrete”).

Esse procedimento foi parcialmente seguido no ato de fundação da Câmara Municipal de Curitiba, em 29 de março de 1693. “Apesar da distância que esses homens se encontravam de Portugal, o processo preconizado nas Ordenações pode ser aqui entrevisto. Foram escolhidos seis leitores os quais, debaixo de juramento, indicaram os ocupantes dos principais cargos municipais”, diz Rosângela.
1828

Ainda segundo a professora, “em Curitiba, entre 1748 e 1762, foram realizadas cinco eleições de pelouro, segundo os trâmites previstos nas ordenações. Duas destas eleições foram posteriormente anuladas. (...) No período de 1767 e 1827, ocorreram outras 20 eleições dessa mesma modalidade, as quais somadas às anteriores (inclusive as anuladas), totalizam 27 eleições de pelouro em cerca de 80 anos”.

Nas situações de recusas, impedimentos e falecimentos era procedida a eleição de barrete, na qual os oficiais escolhiam um novo nome para o cargo. Mesmo nessas condições ainda havia quem recusasse assumir as funções. As eleições de barrete ocorriam com grande frequência, sendo que em alguns anos eram realizadas mais de uma, às vezes para o mesmo cargo.

Em 1828, as Câmaras tiveram uma diminuição de suas atribuições. No recém-instalado Império do Brasil adotou-se a divisão dos poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário (além do “Poder Moderador” que dava totais prerrogativas ao titular do Império). As Câmaras foram reduzidas então a órgãos administrativos. Isso não significou o fim da influência das Ordenações Filipinas sobre o direito brasileiro. Basta lembrar que até a instauração do Código Civil de 1916, as questões desse ramo do direito eram solucionadas por meio do que prescreviam as Ordenações (AVELLAR, Hélio de Alcântara. História Administrativa e Econômica do Brasil. Rio de Janeiro, 1970, citado por Karla Maria da Silva no artigo Câmaras no Brasil Colonial, 2009).

Referências Bibliográficas (em ordem alfabética por autor):

Canha, Vanderléia. A Organização da Câmara Municipal da Curitiba Setecentista. Monografia de conclusão de curso de História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1999

http://www.humanas.ufpr.br/portal/cedope/graduacao/monografias/
Cunha, Fernando. Elites políticas municipais no Brasil-Colônia: Homens-bons da Curitiba setecentista. Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História do Curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2003.
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/24824/D%20-%20CUNHA,%20FERNANDO.pdf?sequence=1
Fabris, Paulo Roberto. Um Debate Acerca da História do Município no Brasil. Ciências Sociais. Vitória: CCHN, UFES, Edição n.03, v.1, Junho. 2008. pp.71-95.
http://www.periodicos.ufes.br/sinais/article/view/2863/2329
Lei de 01/10/1828 – Criando em cada Cidade e Vila do Império Câmaras Municipais. In: CONSTITIÇÕES DO BRASIL. Vol. I. Brasília: Senado Federal, 1986.
Santos, Rosângela Maria Ferreira dos & Santos, Antonio César de Almeida (organizadores). Eleições da Câmara Municipal de Curitiba (1748 a 1827). Série Monumenta. Editora Aos Quatro Ventos, Curitiba, 2003.
Silva, Isis Messias da. Legislação portuguesa e formação de elites políticas locais: juízes e vereadores da Câmara Municipal de Curitiba – Século XVIII. Revista Vernáculo, nº 14 - 15 - 16, pp. 21 - 50.
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/vernaculo/article/viewFile/17435/11438
Silva, Karla Maria da. O Papel das Câmaras Municipais no Brasil Colonial: novas possibilidades de análise. XXV Simpósio Nacional de História – Fortaleza, 2009
http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.1251.pdf

 

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Oficial do 2º Corpo de Infantaria de Curitiba e soldado da Companhia de Auxiliares de Cavalaria de Curitiba em 1765. (Fonte: Arquivo Público de São Paulo, citado in: Carneiro, David. O Paraná na História Militar do Brasil. Travessa dos Editores. Curitiba, 1995. Coleção Farol do Saber) 

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Mapa Geográfico de America Meridional Dispuesto y Gravado. D. Juan de La Cruz Cano y Olmedilla, 1775. (Fonte: http://www.ihgrgs.org.br/cd_mapas_rs/CD/imagens/mapas/cap_1/144-54.htm)


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A arca da Câmara. Um baú com três trancas no qual eram guardados objetos diversos, entre eles, os pelouros (bolas de cera que encerravam as listas com os nomes dos escolhidos nas eleições). (Acervo do Museu Paranaense. Citado in: Páginas Escolhidas – 150 da Criação Política do Paraná. ALEP, 2003). 


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Aquarela atribuída a João Pedro, o Mulato, retratando figurinos militares de 1806 e 1807. (Foto extraída do livro "O Paraná e a Caricatura", de Newton Carneiro - Coleção Memória Cultural do Paraná, volume 1. Governo do Estado do Paraná, 1975)


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A primeira imagem de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba. (Foto - Páginas Escolhidas – 150 da Criação Política do Paraná. ALEP, 2003).