ESPECIAL: Da “favela de alvenaria” à segurança em crise na Vila

por Fernanda Foggiato — publicado 22/07/2016 07h10, última modificação 15/05/2023 22h59
ESPECIAL: Da “favela de alvenaria” à segurança em crise na Vila

A UPS (Unidade Paraná Seguro) da Vila Nossa Senhora da Luz foi instalada em julho de 2012. (Foto: Michelle Stival da Rocha/CMC)

Se a ideia da Cohab-CT com o projeto de habitação popular pioneiro era acabar com as ocupações irregulares de Curitiba, a imprensa já denunciava, em 1967, o início do “favelamento na Vila”. Matéria publicada no dia 18 de junho daquele ano, no “Diário do Paraná”, alertava que a situação era causada pelos problemas “habituais”, como a falta de água, somados ao desemprego e à situação dos que tinham parcelas atrasadas e temiam o despejo. Dentro do “favelamento”, citavam-se contradições entre os cerca de 12 mil habitantes: de um lado, casas se “embelezavam e enriqueciam”, sendo que alguns moradores tinham até carro. Por outro, havia famílias com crianças que catavam brinquedos e comida em meio ao lixo.

“Para a maioria dos moradores da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, eles não estão morando em um núcleo habitacional, mas em uma 'favela de alvenaria', tal é a situação em que vivem, desprovidos de conforto, com serviços públicos a desejar, praticamente isolados de Curitiba, principalmente à noite, quando não há ônibus, táxi, telefone e a farmácia fica fechada”, disse o “Diário do Paraná”, na edição de 12 de junho de 1970. “São tantos os problemas da Vila que é difícil saber qual é o maior. Um deles é a falta de policiamento. Queixam-se os moradores que lá há maloqueiros demais porque não há policiais [suficientes]. De noite ficam três para fazer a ronda, mas não têm carro. Quando precisam de viatura têm que telefonar para a Delegacia de Plantão e esperar que apareçam.”
 

“A Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, construída para ser um dos cartões de visita da cidade, é agora a grande favela de alvenaria, como chamam seus moradores. Isso porque aquela pequena cidade incrustada na metrópole curitibana vem carecendo de toda espécie de benfeitorias e serviços públicos”, continuou o “Diário do Paraná”, em 14 de junho de 1970. Dentre outras demandas, os moradores pediam a retirada dos “maloqueiros”.
 
Antes disso, na edição de 9 de abril, o jornal já havia mencionado essas “presenças incômodas”: “Moradores da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais estão dizendo que a Vila está passando por sua maior crise desde que que foi fundada, devido a um número cada vez maior de marginais”. A matéria acrescentou que “as redondezas do cinema [hoje uma igreja] estão transformadas em zona de bagunça. Pessoas de família, segundo dizem, não podem mais frequentar o cinema sem serem molestadas”.

Em agosto de 1970, o extinto Departamento de Bem-Estar Social da prefeitura divulgou uma pesquisa sobre o perfil dos cerca de 12 mil moradores da Vila Nossa Senhora da Luz, baseada em entrevistas em 2.158 residências. Segundo o documento, 30% dos chefes de família não recebiam o salário mínimo regional; cerca de 50% deles trabalhavam como operários, serventes, biscateiros ou estavam desempregados; 14% eram analfabetos; e apenas 0,9% tinham curso superior. Quanto às donas de casa, 69% não trabalhavam fora e 21% eram analfabetas.

Ainda de acordo com a pesquisa, 64% dos casais tinham de um a quatro filhos e 5% das famílias registravam três mortes de crianças menores de 14 anos. 60% da população descendente tinha menos de 14 anos e muitos dos maiores de 18 anos já haviam constituído família, ainda que morassem na casa dos pais. Das crianças na faixa de 6 a 12 anos, 519 não estavam estudando; dos 13 aos 18 anos de idade, eram 267 fora das salas de aula.

Segurança em crise
O “Diário do Paraná” apontou, em reportagem de 19 de novembro de 1969: “A Vila Nossa Senhora da Luz está despoliciada”. Em entrevista ao jornal, um morador afirmou que faltava viatura aos policiais dali. “Vejo todos os dias, altas horas da noite, crianças de 3 a 10 anos perambulando pelas ruas e grupos de jovens promovendo todos os tipos de desordem”, complementou. Dos furtos, casos de violência doméstica, atropelamentos e outras notícias menos convencionais que estampavam as páginas policiais nos primeiros anos da comunidade - como a realização de um bacanal nos matos que a cercavam, em setembro de 1968 -, a situação foi se intensificando na década de 1970.

Outra reportagem do “Diário”, de 27 de março de 1970, alardeava: “A venda livre de bebidas a menores de ambos os sexo tem sido a causa de brigas constantes e de um sem número de mortes”. A violência causou outro entrave à população. Anunciada para 1º de janeiro de 1970, a circulação de ônibus após a meia-noite, uma demanda antiga, até porque nesse horário os táxis não ficavam na Vila, foi prejudicada porque a empresa responsável pelo serviço alegava que os motoristas e cobradores tinham medo e só trabalhariam de madrugada, ali na Nossa Senhora da Luz, se os veículos contassem com a presença de pelo menos um policial. “Ônibus de madrugada, a novela da Vila”, dizia o título de matéria do mesmo jornal, em junho de 1970.

Em 19 fevereiro de 1970, o homicídio de um jovem de 17 anos revoltou os moradores da Vila e ganhou destaque na imprensa. Apontado pela polícia como assaltante, U.M.R. teria corrido pela travessa 61 e sido assassinado pelas costas, mesmo desarmado. Segundo o “Diário do Paraná”, ele integraria uma quadrilha de ladrões que teria cometido 12 assaltos algumas noites antes. “Os moradores da Vila Nossa Senhora da Luz se preparavam para dormir quando ouviram espantados uma sequência de tiros, gritos e pedidos de socorro.” Ele teria batido na casa 3, mas a proprietária não o deixou entrar. Veio então o primeiro tiro: “Cambaleando tentou pular a cerca ao lado da casa. Ouviu-se outro disparo e U. caia fulminado”.

Mais velho de oito filhos, o jovem trabalhava como ambulante com o pai. Segundo a reportagem, meia hora antes ele havia voltado com a mãe de um culto em uma igreja evangélica e conversava com dois amigos em frente de casa. “Alguns minutos depois o jovem avisou a mãe que ia até a esquina e logo voltaria. Pouco minutos depois de ver seu filho dobrar a esquina, a mãe escutou os disparos.”

De acordo com o relato de testemunhas, os policiais então o carregaram para uma Vemaguet branca e falaram: “Você vai morrer lá fora [da Vila]”. “Um policial, residente na casa 1 da mesma travessa, chegou para o principal atirador e lhe exigiu os documentos, em troco o atirador lhe disse: 'não se envolva rapaz, você não é doente'. Chocado com a cena e sem nada poder fazer, o policial enlouqueceu, tendo de ser internado numa casa para doentes mentais.”

“Falando da batida policial, uma antiga moradora do bairro afirmou que elas são comuns e que muita gente é presa e só sai quando apontar o verdadeiro culpado.” Ainda segundo a reportagem do “Diário”, policiais teriam determinado que o enterro fosse realizado depois de apenas uma hora de velório, realizado na casa do rapaz e com aglomeração de moradores.

Os policiais envolvidos na operação apontaram como assassino um “agente colaborador” da Delegacia de Furtos e Roubos, cujo apelido era Lambari – versão confirmada por testemunhas. Depois voltaram atrás e acusaram “outro marginal, de identidade desconhecida”, o que fez a investigação voltar à estaca zero e as notícias sumirem das páginas dos jornais.

Ainda a (in)segurança
Segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária do Paraná (SESP/PR), a CIC registrou mais homicídios dolosos em 2015 que os outros 74 bairros de Curitiba. Foram 51 casos - seguidos de 35 no Cajuru e de 31 no Sítio Cercado, respectivamente o segundo e o terceiro colocados. No primeiro trimestre deste ano, os três bairros também lideram o ranking, com 19, 14 e 11 crimes dessa natureza.

Na avaliação de Alfred Willer, diretor técnico da Cohab-CT na época da implantação da Vila, “a violência da CIC é causada pela falta de integração entre entre as indústrias e as moradias, tornando as suas ruas pouco frequentadas e inseguras”. Sobre o projeto de desfavelamento, ele diz que o conceito hoje é “ultrapassado”, mas que na época (1966) era uma “exigência do governo federal”.

Para a advogada Clara Roman Borges, professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e integrante do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos (CESPDH), não é possível indicar a década exata em que a violência explodiu em Curitiba. “O aumento da violência é fruto do aumento da desigualdade social, do desnível cada vez maior no acesso à renda, à educação, à saúde e ao saneamento básico. Por quê? Porque essas pessoas não têm acesso a esses direitos básicos e então se utilizam da violência para consegui-los”, explica.

A professora continua que “nos países nórdicos, por exemplo, a violência é menor porque a desigualdade é menor”. Clara, no entanto, pondera que nem todo tipo de violência segue essa linha, como a de gênero e a contra a mulher. “Não é um fator exclusivo, mas com certeza é significativo. O tráfico também gera violência, mas não é só ele. As pessoas acabam entrando justamente para ter os acessos aos direitos básicos.”

Como solução ao ciclo da violência, a integrante CESPDH defende a promoção de políticas públicas voltadas à diminuição da desigualdade social. “Alguns têm uma renda absurda e outras estão na linha da miséria. O problema é que as pessoas não estão preocupadas com essas políticas públicas, mas se o dólar vai baixar para fazerem compras em Miami. Nos países desenvolvidos, o que acontece é que as pessoas olham para o lado, se importam com a igualdade social”, avalia a professora.
 
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