Zoneamento de Curitiba: os Códigos de Posturas (1895-1960)

por João Cândido Martins — publicado 13/09/2019 13h40, última modificação 20/05/2022 13h41
Continuando à história do zoneamento em Curitiba, o Nossa Memória agora se debruça sobre a virada do século XIX para o XX, indo até 1953.
Zoneamento de Curitiba: os Códigos de Posturas (1895-1960)

Detalhe do mapa de Curitiba de 1915 que retrata o zoneamento editado em 1912. (Foto: Acervo Paulo José da Costa)

O pesquisador Rafael Augustus Sêga, em sua monografia “Melhoramentos da capital: a reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916)”, apresentada na Universidade Federal do Paraná em 1996, comenta sobre o Código de Posturas de Curitiba aprovado no ano de 1895. Segundo ele, a norma “denotava a persistência dos legisladores em continuar a esquadrinhar as mais particulares manifestações de seus habitantes”. Em seus 380 artigos, o código abrangia desde temas gerais como a higiene pública e o quadro urbano até pormenores como conservação de árvores e extinção de formigueiros. "É pertinente notar que as posturas municipais eram eficazes porque o não cumprimento de suas normas era passível de penalidade. Seus artigos especificam detalhadamente todos os pormenores das edificações, ruas e avenidas”, dizem Regina Gouvea e Mariza Schaaf, no livro “Significados da urbanização”, mencionado por Sêga em seu trabalho.

“O processo edificatório das duas primeiras décadas do século 20 foi regido pelo Código de Posturas de Curitiba aprovado em 1895, que sofreu algumas alterações. (...) esse período foi caracterizado por uma ação da administração pública mais incisiva no meio urbano. Se as obras públicas de infraestrutura marcaram a forma como os governantes agiram diretamente sobre a cidade, a legislação urbanística regulou a forma como os habitantes deveriam construir, ou seja, estabeleceu a forma como a administração pública induziu a transformação do meio urbano com os aspectos desejados, sempre com o quadro urbano delimitando os espaços onde a legislação incidiria, havendo, com o tempo, a necessidade de se ampliar este controle com a instituição das zonas fiscais”, explica o pesquisador Otto Braz de Oliveira, em seu estudo “O quadro urbano e o processo edificatório em Curitiba: 1919-1953”, apresentado na Universidade Federal do Paraná, em 2016. Todas as leis citadas nessa matéria do Nossa Memória podem ser encontradas aqui, com exceção dos Códigos de Posturas de 1895 e de 1953.

Desde o início do século 20, o Município passa a editar legislações que, a partir do quadro urbano, delimitavam áreas com características próprias. Foi o caso, por exemplo, das leis 117/1903 e 177/1906. A primeira delimitava o quadro urbano que se manteve inalterado até 1929. Já nesse momento, a norma subdividiu o quadro urbano em áreas de interesse. “Essas subdivisões, além de obedecerem a critérios de taxas e de cobrança de impostos, também demarcavam restrições e obrigações às edificações”, diz Otto Oliveira. A lei de 1906 estabelecia o perímetro onde poderiam ser construídas casas de madeira. Esta lei proibiu essas construções na zona central, hierarquizando o uso do solo. Outro aspecto que confirma esse processo diz respeito à altura (gabarito) dos edifícios da zona central, que obrigatoriamente deveriam ser construídos com dois ou mais pavimentos.

A lei 341/1912 não alterou o quadro urbano, mas instituiu três zonas de interesse distribuídas de forma concêntrica (do centro para a periferia). Taxas e impostos variavam de acordo com a zona onde o terreno se encontrava. Essa lei também estabeleceu um imposto anual incidente sobre terrenos não edificados, correspondente a 1% do seu valor venal. Os valores eram estabelecidos conforme a metragem linear da testada, mas havia variações entre as zonas. Os terrenos não edificados na primeira zona tinham estes valores quase três vezes maiores que os da segunda zona, e oito vezes maiores do que os da terceira zona.

Rafael Sêga estudou as reformas urbanas promovidas pelo prefeito Cândido de Abreu (1913-1916), que ficaram conhecidas como “melhoramentos”. O autor destaca “a hierarquização das regiões da cidade. A zona central foi o palco das reformas estudadas nesse trabalho; era onde a fiscalização tornava-se mais rigorosa e as edificações deveriam ser de alvenaria. A segunda zona era destinada às indústrias e a terceira, às moradias dos operários e pequenos sitiantes”. Em 1913 foi aprovada a lei 376/1913 que dispunha sobre o parcelamento do solo. Esta norma determinava que quem desejasse subdividir determinada área de terreno deveria reservar lotes para fins de “utilidade municipal”, tanto no quadro urbano quanto no rocio.

A comparação entre os mapas de Curitiba de 1900 (foto 2) e 1914 (foto 4) revela “os objetivos de hierarquização do espaço e de valorização da região central por intermédio da definição de padrões construtivos mais elaborados nas principais ruas da cidade (15 de Novembro e Liberdade) e na Praça Tiradentes juntamente à proibição da construção de casas de madeira no entorno. O zoneamento estabelecido em 1912 consolida tal ação, delimitando estes perímetros inseridos na primeira e na segunda zona, onde os padrões construtivos são mais rígidos e controlados”, diz Elizabeth Amorim de Castro, na pesquisa “As virtudes do bem morar”.

O Código de Posturas do Município aprovado em 1919 (lei 527/1919) criou 3 zonas para efeitos fiscais: zona urbana, suburbana e rocio. “A zona urbana compreendia todos os terrenos que estavam situados nas ruas, praças e avenidas dentro dos limites do quadro urbano. A suburbana ocupava uma faixa de 1km além dos limites do quadro urbano; e o rocio, o espaço existente entre a zona suburbana e os limites do município” explica Otto Oliveira. Além disso, o texto do código também estipulava que a cada uma das zonas caberia um regime administrativo e fiscal específico. Para Oliveira, este código não inovou, sendo apenas uma compilação das legislações promovidas em Curitiba desde o Código de 1895. Ainda segundo ele, a lei 376/1913 e o Código de Posturas de 1919 pretendiam integrar de uma forma mais adequada os novos loteamentos à estrutura urbana já existente.

Anos 1920 e 1930

Dez anos depois, o prefeito Eurides Cunha enviou uma mensagem à Câmara em que dizia que o quadro urbano estava defasado, pois a área delimitada como suburbana (faixa de 1km além da zona urbana) já se encontrava loteada e arruada. Para ele era necessário rever o perímetro da zona urbana e instituir um imposto sobre as propriedades localizadas nessa faixa. O prefeito também requisitou a criação de um imposto sobre os terrenos edificados e não-edificados que fosse proporcional ao valor locativo (para casas) ou venal (para terrenos). “Pouco tempo depois, em 27 de maio de 1929, o resultado desses dois pedidos pode ser verificado quando da promulgação da lei 768/1929, que estabelece novas faixas de imposto, um novo quadro urbano e uma nova zona suburbana”, observa Otto Oliveira.

A gestão do prefeito Lothário Meissner (1932-1937) foi marcada pela preocupação com a cidade como um todo. O prefeito era favorável à criação de um plano que coordenasse as modificações e acréscimos da cidade, mas para isso era necessário concluir o levantamento aerofotogramétrico. Quando esse serviço foi concluído em 1934, o prefeito comemorou, pois Curitiba era a 3ª capital do Brasil a possuir uma planta cadastral feita com essa técnica. De acordo com Otto Oliveira, até o fim de sua gestão não houve a criação da chamada “Comissão da Cidade” (cujo objetivo seria cooperar com a prefeitura na organização do plano geral da cidade), mas foi promulgada a lei municipal nº 50, que revisava os parâmetros para o parcelamento de solo na capital.

Agache
Em janeiro de 1941, Curitiba assina um contrato com a empresa Coimbra Bueno &
Cia. Ltda. com o intuito de elaborar o primeiro plano diretor da cidade. O prefeito era Rozaldo de Mello Leitão e a população era composta por pouco mais de 140 mil pessoas. Pertencia ao corpo técnico da empresa contratada o engenheiro e urbanista Alfred Donat Agache (cujo nome foi usado para batizar o plano instituído em Curitiba dois anos depois). Leia mais sobre o Plano Agache aqui. Entre as propostas do plano, estava o zoneamento da cidade (zoning). “O zoneamento é a base de todo o plano de urbanização podendo-se mesmo dizer que sem ele o plano não é urbanismo [...]. O zoneamento é a garantia do proprietário e o incentivo de valorização justa. Simplifica, disciplina e hierarquiza as funções urbanas e reflete o nível de cultura dos seus habitantes”, disse o urbanista no texto de apresentação de seu plano para Curitiba. O zoneamento seria o suporte para a implantação do que Agache denominava “centros”, sendo eles: o Centro Cívico; o Centro Comercial e Social; os Centros de abastecimento; a Zona Industrial; o Centro Esportivo; a Estação Rodoviária; o Centro de instrução; e o Centro Militar. Tais centros seriam interligados por vias perimetrais e radiais numa lógica concêntrica.


“A organização da cidade através de Centros Funcionais; o conceito de ‘Zoning’, ou zoneamento; a adoção de um Código de Edificações, implantado em 1953, que permitia a execução de novos edifícios com adequadas soluções sanitárias; e principalmente um novo desenho urbano a ser conseguido através de um ambicioso Plano de Avenidas - foram as principais propostas do Plano Agache”, explica Salvador Gnoato, em seu estudo “Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-IPPUC”, publicado pela revista Vitruvius em 2006. Para Gnoato, a proposta do urbanista francês não foi totalmente adotada e se mostrou falha com o tempo, pois “Agache apresentou um Plano de Avenidas concêntrico, típico das cidades do século 19, sem uma proposta definida de adensamento e de verticalização”.

O Código de Posturas de 1953
Este código teve como impulso o fato de que as normas que regulamentavam as construções e outros aspectos da urbe ainda eram as mesmas que estavam vinculadas ao Código de Posturas de 1919, isto é, defasadas em relação às novas condições populacionais da cidade. Além disso, a legislação complementar era dispersa. Otto Oliveira aponta que “contrariamente ao que foi verificado para o código de 1919, a saber, que ele foi uma síntese das leis elaboradas nas duas primeiras décadas do século 20, o Código de Posturas de 1953 (lei 699/1953) alterava praticamente tudo o que existia antes”. Curitiba contava com aproximadamente 180 mil habitantes.

Quanto ao zoneamento, a classificação do Código de 1953 delimita espaços funcionais em quatro macro zonas: comercial, industrial, residencial e agrícola. Cada uma é subdividida, totalizando onze zonas. Questões como o que pode ser construído em cada zona e os parâmetros construtivos de cada área são contemplados no texto. “O quadro urbano e as zonas fiscais não deixaram de existir, porém voltaram a sua função inicial, apenas regular a arrecadação de impostos da cidade”, esclarece Otto Oliveira. Para se ter uma ideia das diferenças entre o Código de 1919 e o de 1953, o primeiro classificava as construções em “habitações em madeira” e “prédios em geral”. Já o Código de 1953 listava mais de 25 tipos diferentes de construções, como casas, galpões, escolas, teatros, garagens, etc.

O Código de 1953 foi uma tentativa de superar o que fora estabelecido pelo Código de 1919, que utilizava o quadro urbano, zonas fiscais e as três zonas (urbana, suburbana e rocio). Uma prova disso é que ainda nos anos 1940 outras áreas foram criadas com regras próprias para que a organização da cidade fosse mais eficiente. “Parecia não haver coerência entre os discursos que pregavam por um planejamento a longo prazo e as leis, o que concorreu para a necessidade de uma alteração radical na forma como se organizava o meio urbano, materializada com o Código de Posturas e Obras de 1953”, explica Otto Oliveira. Novas mudanças aconteceriam somente em 1960, com a aprovação das primeiras leis específicas sobre zoneamento em Curitiba. É o que se verá no próximo texto, que finaliza essa série.

Na véspera da revisão da Lei de Zoneamento, a Câmara Municipal de Curitiba (CMC) publica uma reportagem especial, dividida em três capítulos, sobre as mudanças na cidade desde a sua fundação até os dias de hoje. Elaborada pelo jornalista João Cândido Martins, ela vai dos primeiros arruamentos, passando pelos Códigos de Postura do começo do século 20, às novidades mais recentes, nos Planos Diretores, que ordenam a cidade até hoje. Para ler em ordem, começe pela notícia Zoneamento de Curitiba: do arruamento ao bairro industrial (1720-1895), siga para Zoneamento de Curitiba: os Códigos de Posturas (1895-1960) e conclua a leitura com Zoneamento de Curitiba: surge o Plano Diretor (1960-2019).

Referências Bibliográficas
Castro, Elizabeth Amorim de; Trindade, Leda; Posse, Zulmara Clara Sauner. As virtudes do bem morar. Curitiba, 2012. [Link aqui]  

Castro,Elizabeth Amorim de; Sganzerla, Eliane; Posse, Zulmara Clara Sauner. O matadouro municipal e o Guabirotuba. Curitiba, 2015 [Link aqui]

Costa, Paulo José da. Viajando pelo Mappa do Municipio de Coritiba, de 1915. [Link aqui]

Gnoato, Salvador. Curitiba, cidade do amanhã: 40 anos depois algumas premissas teóricas do Plano Wilheim-IPPUC. Texto apresentado no 1° Seminário de Cidade Contemporânea – Curitiba de Amanhã 40 anos depois (1965-2005), em 2, 14 e 15 de setembro de 2005, organizado pelo PPGTU e pelo Grupo de Pesquisa: Teoria e História e Arquitetura e Urbanismo da PUCPR. Publicado em Vitruvius, maio de 2006. [Link aqui]

IBGE. População dos municípios das capitais e Percentual da população dos municípios das capitais em relação aos das unidades da federação nos Censos Demográficos. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. [Link aqui]

Oliveira, Otto Braz de. O quadro urbano e o processo edificatório em Curitiba: 1919-1953. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em História – Memória e Imagem, pelo curso de História – Memória e Imagem da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Professor Doutor Antonio Cesar de Almeida Santos. Curitiba, 2016.

Rodrigues, Janelize Marcelle Diok. Em busca de modernização: o legado do arquiteto Donat Alfred Agache para a cidade de Curitiba. Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Professor Doutor Dennison de Oliveira. Curitiba, 2010. [Link aqui]

Sêga, Rafael Augustus. Melhoramentos da capital: A reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Curso de Pós-Graduação em História do  Brasil, opção em História Social, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1996. [Link aqui]